30/10/2018, 14:39
A Disneylândia marxista
por André Cunha
Nos confins da China rural um burocrata tem uma ideia com remotas possibilidades de dar certo: comprar o corpo embalsamado de Vladmir Lênin e exibi-lo num mausoléu que receberia milhões de turistas por ano, transformando a região numa espécie de parque temático revolucionário. O plano, baseado em rumores de jornais velhos de que a múmia do líder bolchevique (até hoje em exibição na Praça Vermelha, em Moscou, não sem controvérsia) não estaria sendo “bem tratada” pelos russos, é de uma ingenuidade comovente. A forma como chefe Liu, o alpinista social e político que sonha em ser tão grande quanto o presidente Mao, pretende realizá-lo, nem tanto.
Lançado no Brasil pela Record, Os beijos de Lênin, escrito por Yan Lianke, uma “caricatura pós moderna do sonho comunista que esconde um capitalismo desenfreado” segundo o The New York Times Book Review e um livro que “satiriza uma sociedade perversa na qual o poder e o dinheiro são idolatrados indiscriminadamente” na opinião do Wall Street Journal, levou o prêmio Franz Kafka em 2014. Faz sentido.
As exasperantes descrições das condições climáticas, o apego aos detalhes legais e econômicos, a sensação de sentir-se um inseto numa esmagadora cadeia de comando, todas essas características e muitas outras conferem ao livro o legítimo adjetivo “kafkiano.” Coisas bizarras são narradas com naturalidade e massacres descritos com uma pureza quase bíblica. Vista pelos isolados habitantes das montanhas, a Revolução parece um show de aberrações e de violações aos direitos humanos: saques, extorsões, massacres e humilhações de deficientes físicos.
Sou informado que a publicação de Os Beijos de Lênin rendeu a Yan Lianke a expulsão do Exército Popular de Libertação da China. E penso: seria sua obra contrarrevolucionária?
Tags: literatura; Yan Lianke;