13/02/2020, 10:04
Incredulidade máxima
por André Cunha
Boas narrativas devem ser, se não verossímeis, pelo menos minimamente críveis. Por mais absurda que seja a premissa de A Metamorfose, por exemplo, tomamos como certo que, naquelas circunstâncias, o protagonista virou um inseto, e aceitamos as consequências desse fato. Quebrado o pacto da credulidade – a de que o leitor / espectador aceita a lógica interna daquele universo, suspendendo seus juízos durante a fruição da obra -, a receita desanda e a mágica acaba. Não estou mais viajando na história e sim consciente que estou lendo um livro ou vendo um filme. A realidade se impõe.
É o que ocorre com a série Watchmen, criada Damon Lindelof pra a HBO e inspirada nos quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons. Hoje considerada um clássico, a história original partia de uma ideia intrigante – o que aconteceria se certos vigilantes de fato tivessem superpoderes? – e apresentava uma cartela de personagens excêntricos e esquisitões que davam um clima todo especial à história. A série resgata alguns desses personagens e expande o universo da saga – pra pior. Assisti-la é um exercício contínuo de imersão numa barafunda narrativa tão absolutamente implausível que por vezes nos perguntamos se não se trata de alguma espécie de pegadinha. A trama gira em torno do tema racismo, que mal tangenciava a história original.
Pra exemplificar a torrente de baboseiras em formato cult-vintage-pseudosatírico que a HBO preparou pra seu nicho de mercado, basta transcrever trechos da sinopse do último capítulo, disponível na Wikipédia: “Trieu resgata seu pai, Veidt, de Europa, como ela o quer, e Bian, um clone de sua mãe, presente quando ativa uma máquina que desenvolveu para roubar o poder de Manhattan para si mesma. Laurie descobre que Wade está vivo, disfarçado de membro da Kavalry. Assim que os Kavalry ativam seu sistema, Trieu teleporta a instalação para o centro de Tulsa, encontrando Joe escorrendo e matando a liderança do Ciclope. Antes de Trieu matá-lo, Manhattan usa a distração para teletransportar Veidt, Laurie e Wade para Karnak, onde Veidt refaz seu sistema de chuva para enviar lulas congeladas para pulverizar o dispositivo de Trieu.” É o que eu chamo de pulverizar o dispositivo narrativo