21/05/2020, 07:39
Passear, flertar e beijar
por André Cunha
Valéria (Diana Gómez) tem vinte e oito anos, mora em Madri, sonha em ser escritora, tem meros 250 euros na conta bancária e está em crise no casamento. A angústia de saber que a relação empacou, somada a uma nova paixonite despertada por um arquiteto bonitão, permite classificá-la como uma personagem tomada pelo bovarismo (referência ao romance Madame Bovary, de Flaubert, que significa, de modo geral, certa insatisfação crônica com a mediocridade da vida e, de forma particular, um desprazer profundo com a vida conjugal). Uma abordagem brilhante sobre o assunto pode ser encontrada no livro A Orgia Perpétua – Flaubert e Madame Bovary, de Mário Vargas Lhosa (Alfaguara).
Baseada nos livros de Elisabet Benavent, a série Valéria (2020), disponível no Netflix, adapta o bovarismo aos tempos modernos, investigando as desventuras sexuais da protagonista e suas amigas na faixa dos trinta anos. Envoltas com mensagens de áudio e texto em grupos de Whatsapp, fustigadas por dificuldades financeiras e premidas pela boa e velha incomunicabilidade humana, essas intrépidas espanholas entregam uma das melhores surpresas da temporada.
Em tempos sombrios de isolamento social, assistir Valéria é uma experiência encantadora, tanto que um crítico chegou a definir a sensação como um “guilty-pleasure”, ou prazer culpado. O que em circunstâncias normais não passaria de uma comédia leve e despretensiosa acaba por revelar-se um dos últimos testemunhos do mundo que outrora conhecemos, onde as pessoas flertavam, socializavam e se tocavam sem maiores neuroses. Acrescente a isso a exuberante sonoridade da língua espanhola, a beleza e a expressividade de Diana Gómez, o colorido dos figurinos e as tiradas politicamente incorretas.
Há quem acuse a série de ser pseudo-feminista. Acusação feita, sem dúvida, por pseudo-intelectuais. O público tem reagido de forma entusiasmada.