27/12/2023, 09:07
“O que eu consegui lidar e transformar em emoção cênica, eu levo pro público.”
por Felipe Lucchesi
Colunista: Felipe Lucchesi
O ator Renato Izepp gerou a ideia, escreveu e atua no monólogo ‘Pai-Brasil’, contando o melhor das suas memórias e expondo, as suas dores, todas entrelaçadas com as histórias do seu falecido pai, que era militar.
A plateia identifica-se com a ingenuidade do menino que vê no pai, a figura de um herói e ao mesmo tempo, emociona-se, com o adulto que impotente, dialoga com questões da sociedade e da própria vida.
A direção é de Rodolfo Lima e vale destacar que a obra durante o ano de 2023 fez turnê por diversos teatros da capital e do Estado de São Paulo, conquistando prêmios de “Melhor Ator” no Fescete-Festival de cenas teatrais de Santos e no Catarse-Indaiatuba.
O caminho
Começou atuando aos 15 anos apenas na Oficina Teatral Regional Pagu, com a coordenação e direção de Neto Alves, em Mongaguá.
É formado em interpretação pela Escola-Teatro Célia Helena e passagem pela Escola de Arte Dramática ECA/USP. Participou também de vários cursos e oficinas teatrais e audiovisuais, entre eles “Interpretação” com Yara de Novaes, “Improvisação Teatral” com Ana Roxo, e “Commedia Dell`Arte” com Deborah Serretiello”.
Atuou em diversas peças teatrais, entre elas Terror e Miséria do Terceiro Reich (Bertolt Brecht) e As Bruxas de Salém (Arthur Miller). Na Pandemia participou do espetáculo on-line Cemitério Vertical, com direção de Eric Lenate. No audiovisual já atuou em curtas metragens, clipes musicais e publicidades.
Em 2023 estreou a peça Pai-Brasil no Teatro Arena em São Paulo, que traz memórias do pai militar falecido, com a qual recebeu prêmios de melhor ator no Fescete-Festival de cenas teatrais de Santos e no Catarse-Indaiatuba.
Entrevista exclusiva com
Renato Izepp
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Como surgiu a ideia de montar o espetáculo?
Renato Izepp (Ator) – Sou filho de policial militar e ator. Me sinto numa posição peculiar entre ter uma memória afetiva com a farda e o que ela representa na vida histórica do País e para pessoas de outras realidades socias, como artistas e pessoas periféricas, em especial negros. Sempre me indaguei: como nossa sociedade consegue ter a figura institucional do policial que muitas vezes propaga violência com uma farda e voltar como um pai amoroso para sua família? Durante a pandemia passei por um momento de refletir o que eu queria como artista. Há muitas histórias e temas que desejava abordar: masculinidade, paternidade, a minha relação com meu pai, a relação do meu pai com a polícia, a relação que as pessoas têm com a polícia, a relação que as pessoas de onde venho têm com a religião, relações amorosas, com a necessidade masculina de ser um super-herói que resolve tudo, o “fracasso” em tentar buscar modelo de vida social, e do fracasso em não conseguir superar as expectativas daqueles que amamos, as nossas próprias, enfim, eu queria falar de tudo que vejo inserido na minha bolha social. E eu sempre me interessei por histórias de pessoas “comuns”. Pegava trem e ficava imaginando o que aquelas pessoas que vivem na periferia da grande cidade, sentem, que situações já vivenciaram. Um sujeito “simples” pegando um trem pode ser o herói da vida de alguém, do seu filho. E eu sempre tive desejo de contar a história do meu pai que socialmente era uma pessoa “comum” mas que carregava com ele, histórias emocionantes de quando serviu exército, que me inspiravam e me faziam querer ser como ele, meu herói. Convidei o Rodolfo Lima para me dirigir e lhe contei de tudo isso que eu queria falar. Ele propôs encontros semanais onde em cada um, eu traria uma proposta de cena diferente e fomos montando um mosaico com todos esses assuntos. Chegamos num denominador comum entre elas, que era a história do meu pai. Com ela poderia abordar todos esses temas, muitas vezes de forma indireta, mas elas estariam lá.
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Por que a escolha de ser um espetáculo e nenhum outro formato artístico?
Renato Izepp (Ator) – Por ser ator sempre imagino as histórias que desejo contar nesse formato. Eu gostaria que meu pai estivesse aqui. Queria que todos conhecessem o homem que ele era. Então acho que contar a sua história com o meu corpo, com minha voz, eu, que também vivi essa história e carrego ela comigo, era a melhor forma de tentar, nem que seja por milisegundos, compartilhar sensações que eram sua presença. Além disso a ideia de fazer um monólogo em específico, se deu pelo fato de eu querer ter uma peça que pudesse servir como meu cartão de apresentação e também, abordar temas da minha pesquisa pessoal. E por ter quase nada de grana pra investir, esse formato solo me daria mais liberdade e o modelo mais intimista deixaria mais fácil de ser executado onde e quando quiser.
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Como foi trabalhado em você o fato de expor sua história pessoal?
Renato Izepp (Ator) – A princípio achei que seria fácil, pois eram as minhas histórias.
Conforme fomos aprofundando, vi que mexia em lugares que eu desconhecia em mim e nas pessoas que fizeram parte dela.
Quando perguntava histórias do passado pra minha mãe, por exemplo, vi que havia muitas feridas e muitas vezes tinha que recuar.
Essa peça foi também um lugar de cura emocional pra lidar com essa perda. E trabalhar tudo isso pra chegar de forma teatral para o público foi um aprendizado e tanto. Durante todo o processo haviam perguntas norteando as minhas escolhas: como me dispo da minha opinião pessoal para simplesmente contar essa história como eu a sinto? Como fazer uma história desses relatos sem ficar só rodando no meu umbigo, mas que possa criar pontes par quem não conheceu meu pai, a mim ou tenha uma relação diversa com tudo que aborda na peça, como a polícia?
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Há pontos de ficção na peça?
Renato Izepp (Ator) – É tudo baseado em fatos reais. Claro que passam pela memória de alguém, no caso a minha, e sabemos que a memória é fluída e tem o filtro do tempo ( eu tinha 19 anos quando ele morreu e hoje tenho 36), do filtro de quem sou hoje, então não são a verdade em si. Mas tento ser fiel ao que lembro e às conversas que tive com minha mãe e irmãos. Diria que é uma peça baseada em fatos reais dramatizada (pelo viés do filho).
“Então se eu pudesse voltar no tempo, eu queria poder dizer que eu o amava muito e não largaria do pé dele até ele melhorar.”
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Quantos ‘Renatos’ acredita que já tenham visto a obra? Como tem sido o feedback do público?
Renato Izepp (Ator) – Muitos Renatos e feedbacks surpreendentes. Eu sou um homem branco, cis, hétero de classe média contando a história de seu pai policial e evangélico e falando da minha própria formação masculina padrão. Havia medo, sim. Muito me foi questionado se eu devia fazer isso. Ainda mais por ser um monólogo. Resolvi arriscar. Abri o espetáculo e comecei a receber os relatos das pessoas: “meu pai, avô, também era militar, e várias vezes parecia que você estava falando dele” “minha formação é evangélica e passei por coisas parecidas na igreja”; “nunca tinha me perguntado como meus pais se conheceram”; “Depois de ver sua peça comecei a olhar a história dos meus pais de outra forma”, etc. Outro dia uma bombeira, que trabalhava no teatro que fui apresentar, me abordou e começou a contar emocionada que nunca tinha visto uma peça que trazia tanta coisa da realidade dela. Também participamos de festivais e tivemos uma acolhida linda: No Fescete ( Santos) fomos indicados como Melhor Ator, Melhor Iluminação e Melhor Direção, tendo ganhado os dois primeiros, e no Festival de Cenas Curta de Indaiatuba vencemos todos esses prêmios e mais o de Melhor Cena e mais uma indicação de melhor roteiro. Pra mim o maior prazer é saber que a história que trago conecta com as pessoas, inclusive, quando elas têm um histórico de vida diferente do meu. Essa é minha maior alegria nesse projeto.
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Tendo a maturidade de hoje. Qual conselho daria para o ‘Renato’ da época em que tudo ocorreu?
Renato Izepp (Ator) – Na época eu não tinha maturidade emocional pra lidar com a situação. A separação dos meus pais foi tristemente marcante pra mim e eu não fazia ideia do que eles passavam, em especial meu pai . Queria ter tido maturidade para conseguir acolher as dores dele. Ter julgado menos e focado mais em estimulá-lo a lidar melhor com suas perdas e recriar sua história. Fazê-lo enxergar o seu valor ainda que não tivesse conseguido ter tudo que ele achava que a “sociedade esperava dele”. Que o que importava era quem ele era, não o que ele tinha. Meu pai estava com depressão, sem apoio espiritual ou da instituição policial ( que na prática ajuda a afundar mais ainda os policiais que começam a sofrer problemas psicoemocionais) e veio de uma época onde pedir ajuda a psicólogos era coisa de gente louca. Então se eu pudesse voltar no tempo, eu queria poder dizer que eu o amava muito e não largaria do pé dele até ele melhorar. E não ter deixado ele ir tomar a bolsa de sangue no hospital, onde, fatidicamente, pegou a infecção hospitalar que o matou. Ele poderia estar aqui se não tivesse acontecido essa fatalidade.
Felipe Lucchesi (Jornalista) – Durante o processo de montagem ou na constante execução da peça, fez você ter gatilhos?
Renato Izepp (Ator) – Sim. Lidar com uma história pessoal carregada de dores e perdas nunca é fácil. Ainda mais que havia muita coisa que eu não havia mexido, falado ou curado antes. Foram muitas sessões de terapia falando sobre o processo da peça. Coisas que eu sequer lembrava. Há histórias traumáticas que eu fui lembrar uma semana antes da estreia. Teve momentos que tive que dizer pro diretor: isso não irei levar pra cena. O que eu consegui lidar e transformar em emoção cênica eu levo pro público.
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