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30/07/2022, 02:12

A solidão na ponta dos dedos

por Felipe Lucchesi

Colunista: Felipe Lucchesi

Hugo Lorenzetti Neto quando começou a escrever não sabia ao certo do encontro que teria com a própria solidão e do quanto ela o ajudaria a compor seus livros de poesia.
Autor dos livros: “24” e “A máquina extraordinária”, publicados pela Editora Zouk, Hugo é Paulista, nascido em Campinas e possui uma extensa relação de profissões: Poeta, Tradutor, Ensaísta e Diplomata.

Entrevista

Felipe Lucchesi (Jornalista) – Como foi o seu encontro com a poesia?

Hugo Lorenzetti Neto (Escritor) – Eu me encontrei com a poesia do jeito que as pessoas se encontram com ela, mas às vezes não percebem. Minha mãe cantava uma porção de músicas do cancioneiro tradicional, e me ensinava a cantar junto. Essa forma, que envolve também a relação próxima entre mãe e filho, fez com que a poesia tivesse um lugar próximo das emoções mais básicas. Então o que aconteceu na verdade foi perceber depois que existe um sistema literário, que há poemas, poetas e livros. Essa outra entrada da poesia já está mais ligada a meu pai, que escrevia quando era jovem, e tinha seus poemas organizados num caderno, e que comprava livros para mim. Havia em casa a enciclopédia Delta Larousse, e entre as coleções estava uma para crianças. O primeiro livro da coleção infantil era de poemas, e esse foi meu primeiro, ou pelo menos o primeiro que me lembro de manusear. Acho que ainda dá para falar de uma terceira abertura para a poesia, pensar em escrever, ou ler como quem quer escrever. Acho que isso tem a ver com solidão; especificamente a solidão de menino afeminado na escola, e depois de adolescente queer. As primeiras coisas que escrevi eram elaborações da solidão e dentro da solidão de pessoa estranha, estragada, queer. Há um ensaio interessante de Foucault e Sennet sobre solidão e sexualidade, que quando li, já mais recentemente, iluminou essa sensação. Você é colocado ou colocada violentamente para fora da vida “normal”. Sofrer a violência dos meninos da escola, escapar para a biblioteca: a poesia entra aí como resposta e enfrentamento.

Felipe Lucchesi (Jornalista) – Quais artistas são as suas referências na poesia?

Hugo Lorenzetti Neto (Escritor) – As referências são muitas, até porque eu tenho uma forma de escrever que vem da colagem de muita coisa, da acumulação de referências. Eu gosto de uma gente esparramada. Ana Cristina César, Hilda Hilst, Sylvia Plath, Anne Sexton. Também gosto muito do neobarroco, dos procedimentos de caixa de eco, ou seja, se há algo que se quer dizer, fazer reverberar e anotar como poema o eco: Severo Sarduy, Josely Vianna Baptista, Horácio Costa e Nestor Perlongher, por exemplo. E a cultura pop. Bjõrk, filmes de slashers, tipo “A hora do pesadelo”, filmes de terror, a cultura camp no cinema. Aliás, o aspecto desajeitado e certeiro do camp – por exemplo, elegância e glamour de comercial de cigarro dos anos 1980, o mau gosto intencional e programático contra um bom gosto doutrinador: muita coisa que opera nessa chave me interessa. Então os filmes de John Waters, a nostalgia pelos anos 70/80, a telenovela brasileira mais antiga, dessa mesma época: esses cacos de coisa vão entrando na escrita. E, claro, a referência de autores gays. A gente acaba formando uma família de letras. Piva, Cesariny, Botto, García Lorca, Cernuda, Al Berto: acho super importante ler quem veio antes e escreveu com todos os aspectos de sua libido em marcha.

Felipe Lucchesi (Jornalista) – O que acredita que distancia as pessoas de apreciarem a linguagem poética?

Hugo Lorenzetti Neto (Escritor) – Sobre as dificuldades das pessoas em apreciar a linguagem poética, a gente podia ir pelo caminho óbvio, que é o par indisponibilidade e achar que é difícil e não ter prática. É verdade, sim, achar poesia é mais difícil. Não são muitos os livros que são reimpressos. As tiragens são pequenas, via de regra. Aí fica tudo escondido. E na escola a gente tem essa coisa que faz o poema parecer uma vaca cujas tetas a pessoa tem que espremer para que ele dê o significado. Isso é um problema social, de falta de promoção de letramento literário, e a poesia acaba ficando na galeria dos impenetráveis. Mas existe uma coisa grave, que é o quanto a gente quer as coisas explicadas e rápidas, imediatas. É o modo de comunicação das coisas no neoliberalismo, e não se trata de apontar o dedo, como também se faz muito – e também é forma neoliberal –, essa individualização da responsabilidade por uma coisa muito mais estrutural. Nesse sentido o meme, o textão normativo que ensina a opinião correta, tudo isso atormenta a vontade de perder tempo com um poema, e de se satisfazer não entendendo muito bem o que está ali, mas entender alguma coisa, depois reler e entender mais, depois reler de novo e entender o contrário: esse jogo anda bem abandonado.


“Acho que isso tem a ver com solidão; especificamente a solidão de menino afeminado na escola, e depois de adolescente queer.”

“O poema está lá com espaços para que quem o lê possa colocar significado e não extrair.”




Felipe Lucchesi (Jornalista) – Como surgiu a ideia de escrever livros com esse tipo de linguagem? 

Hugo Lorenzetti Neto(Escritor) – Quando resolvi que queria escrever para publicar, fazer circular, eu achava que ia escrever prosa. Foi conversando com amigas e amigos poetas, e fazendo mesmo os textos, que percebi que eu não escrevo muito normal não. E aí o prazer da escrita determina. Eu adoro escrever, eu me divirto, me emociono, me irrito, acolho gente, tudo com minha escrita. É a coisa mais carregada de desejo na minha vida. Será que este delírio responde? Porque não é uma coisa de fui lá e disse “bom, agora vou ser poeta”, mas tampouco é aquela coisa que tem gente que fala de que foi escrito pela poesia. Algo no meio desses, ou talvez em outra linha longe desse par: gostar de me expressar e exercitar a expressão com prazer estético e para provocar prazer estético foi o que mais me aproximou da poesia.

Felipe Lucchesi (Jornalista) – Os seus livros possuem um ritmo de linguagem poética que foge do tradicional. Há um receio de não ser compreendido e distanciar o interesse de leitores por conta disso?

Hugo Lorenzetti Neto(Escritor) – Não tenho receio não. Quer dizer, pode ser que os livros assustem e que tenha gente que desista, e é uma pena. Mas como eu vou fazer, se é assim que eu faço, não é? Eu acho o seguinte: o poema está lá com espaços para que quem o lê possa colocar significado e não extrair. São poemas bem avessos a essa postura escolar (de escola ruim) de “o que o autor quis dizer”. Tem bastante imagem, cor, sensação na minha escrita. Então talvez eu pediria para quem pegar o livro – especialmente o 24 – sentar e curtir e perceber que eu não quis dizer nada não, que eu quero que você diga como se acomodou nos poemas, se eles mexeram nas emoções no sentido menos cafona de emoções mesmo: bateu no corpo? entristeceu? fez rir? trouxe imagens tuas pra tua cabeça de quem lê? Acho que é por aí. 

Felipe Lucchesi (Jornalista) – Afinal, há uma maneira correta de compreender um texto ou a maneira correta está diante do que é sentido por quem lê?

Hugo Lorenzetti Neto(Escritor) – Como já venho dizendo: não existe forma correta de entender ou sentir. Claro, existe a viagem na maionese, que vem ou dessa necessidade de achar que o autor quis dizer – e da sofisticacão do discurso de exegese literária –, ou do fato que a pessoa que lê está olhando demais para dentro, para referências não compartilhadas lai no texto. Mas fora isso, se você vai ali com o corpo para o poema, alguma coisa vai acontecer. De vez em quando alguém me escreve e diz que não entendeu um poema ou outro mas que gostou porque fez a cabeça vagar. Então: isso para mim é perfeito. A literatura está aí para a gente usar a linguagem de forma indomável, cheia de desejo, contrária a opressão do cotidiano das palavras. A leitura que se dá conta disso não vai ser viagem na maionese.

Crédito – Fotos (matéria)
Juliana Perdigão
Foto (capa)
Hugo Lorenzetti Neto

 

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