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10/02/2022, 16:16

Carnes Baratas

– Helena, sabe daquela minha camisa azul?
– …
– Helena?
– …
– HELENA!?
– Ai, dona Zuleica! Pra que essa gritaria?
– Porque você não ouviu quando eu chamei antes. Tava pensando na morte
a bezerra?
– Da bezerra, não. Daquele moço… O que foi morto no quiosque, no Rio.
– Horrível, aquilo.
– E, também, naquele outro, que foi assassinado pelo vizinho.
– Revoltante! Os dois casos.
– Daí, tava lembrando daquela música, daquela cantora que morreu esses dias.
– Qual?
– Uma descabelada, da voz grossa.
– Elza Soares?
– Isso.
– Qual música?
– Uma que fala que a carne negra é a mais barata do mercado.
– Sim. Tocou bastante logo após a morte dela.
– Então. Esta semana, teve aquele mané lá que defendeu o nazismo e deu o maior auê…
– Foi. Até o Aras, que nunca faz nada, tá querendo processar o cara.
– Já o Bozo, não deu uma palavra pelos mortos, mas quer investigar a invasão lá da igreja em protesto.
– Bom… Concordo que a invasão da igreja foi desnecessária. Alguns dos culpados já estavam presos. Foi só para dar munição ao presidente.
– Tá. Pode ser. Mas…
– Sim, Helena! Concordo com vc. Senão ele, ao menos a Damares tinha que se manifestar. Mas, se te consola, também não devem se manifestar pelos judeus.
– Não consola.
– A vida dos outros não importa para essa gente.
– Fico pensando… Quantos outros morrem igual? Sem causar alarde… Nas operações policiais…
– Isso está começando a mudar.
– Tá nada, dona Zuleica! E o rapaz lá que foi preso injustamente?
– Pois é. Mas já foi solto. A sociedade está mudando.
– Dava para ser mais rápido, não? Cansada de ser a carne barata. Cansada de ter medo.
– Talvez esse governo monstruoso ajude a acelerar as coisas.
– Como?
– Unindo todos que são contra ele, pelas causas que ele combate.
– Sei não. Pra mim, o que ele fez foi soltar os monstros.
– É verdade. Ele deu poder e voz a essa gente. Mas, por outro lado, ao tirar esses esqueletos do armário, ele também os submeteu ao julgamento da sociedade, que não aceita mais essas coisas.
– O tempo dirá. Espero viver até lá.
– Vai viver. Ei! E minha camisa?
– Ai, dona Zuleica, nem te conto. Sabe essa água sanitária que fica aqui em cima?
– Putz! Melhor nem contar mesmo! Acabei de dizer que você vai viver,  não quero me desmentir.