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24/07/2019, 09:30

Desordem e regresso

por André Cunha

Um cliente entra numa livraria procurando O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Bernardo, o vendedor, personagem de Porca, escrito por Alexandre Marques Rodrigues e publicado pela Record, adverte: “Não acontece nada no livro inteiro (…) O livro conta a preparação de uma comemoração que nunca chega, você lê mais de mil páginas, elas acabam e daí você percebe que não foi nada, não aconteceu porra nenhuma.”

 

A técnica da procrastinação literária – também utilizada por Thomas Mann em A Montanha Mágica – é de certa forma reciclada por Rodrigues em Porca, “uma história interminável, inacabada, onde late, como um rumor constante, sem princípio nem fim, a desordem da ordem.” Durante a maior parte do tempo Bernardo espera por Marie, a quem chama de Ela. Ambos vão se encontrar no apartamento do sincero vendedor. Como será? O que dar de presente? O que cozinhar? O que dizer? Como se comportar? O que é melhor: se masturbar pra aliviar a tensão ou guardar toda a energia sexual pra Ela?

 

Rodrigues trabalha, como se vê, um tema pra lá de contemporâneo: o da ansiedade (aflição, agonia, desejo veemente e impaciente). A estrutura também é, digamos, bem pós-moderna, repleta de blocos de textos paralelos, numa diagramação caleidoscópica. As vozes narrativas se revezam, os personagens se confundem, nada fica claro. Teríamos aí um daqueles livros que investigam o Zeitgeist (espírito do tempo) e colocam o dedo no pulso de uma época? De certa forma, mas por vias indiretas. Pra começar, o autor sequer cita a internet ou as redes sociais. A história se passa numa época incerta em que fanáticos religiosos impõem uma espécie de ditadura cristã e proíbem comportamentos que consideram imorais, a começar pela celebração do carnaval (há pouco tempo Daniela Mercury e Caetano Veloso lançaram a música Proibido o Carnaval, com a mesma ideia). No subtexto há uma crítica feroz às religiões. Aqui, autor e editora tomam uma decisão ousada. Na contracapa lê-se a seguinte frase em caixa alta: “A IGREJA É UM CU ESGARÇADO.” O petardo herético explícito pode repelir leitores mais escrupulosos. Felizmente a blasfêmia não é proibida no Brasil. Ainda.

 

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