10/06/2021, 09:29
Devagar, quase parando
por André Cunha
Ficar preso no engarrafamento não é uma experiência recomendável se tiver algo de urgente a fazer, tipo cometer um assassinato. Isso não parece ser um problema pros agentes russos que, em retaliação a uma operação do exército norte-americano na guerra da Síria, saem matando geral os militares que dela participaram.
Por volta dos onze minutos do filme Sem Remorso (2021), dirigido por Stefano Sollima e baseado na série de livros de espionagem de Tom Clancy, um desses condenados está encalacrado no trânsito na cidade de Atlanta, Geórgia, avançando lentamente e com esforço, enquanto fala com a esposa ao telefone: “Estou indo! Fiquei preso no… Jesus! Anda logo!”
De repente, do furgão igualmente desprovido de mobilidade que segue na frente, saltam matadores profissionais que sacam metralhadoras e, sem se importar com as condições adversas, metralharam o sujeito, apenas para, consumado o ato, retornarem ao veículo, fecharem as portas e continuarem o lento percurso em meio ao oceano de outros veículos cujos motoristas e passageiros parecem não ter visto nada de incomum na ousada e sanguinolenta manobra.
Apesar de esdrúxulo, o bisonho erro de continuidade funciona como uma espécie de metáfora do filme, que, confinado no estreito formato a que se propõe, narra a vingança de John Kelly (Michael B. Jordan) contra os assassinos da sua esposa grávida. Participando de uma série de tiroteios intermináveis que não levam a lugar nenhum, esse que tem sido vendido como um James Bond repaginado tampouco se mostra preocupado em traçar qualquer plano de fuga após perpetrar suas execuções, inaugurando o insólito gênero “filme de espionagem no qual ninguém se dá ao trabalho de sequer dar uma espiada.”
Tags: cinema, espionagem, sem remorso