28/11/2019, 11:22
O sonho como ele é
por André Cunha
As melhores cenas das melhores peças do maior dramaturgo brasileiro (Nelson Rodrigues) dirigidas pelo guru do teatro brasiliense (Hugo Rodas). Tudo é superlativo em O Olho da Fechadura, em cartaz no Espaço Cultural Renato Russo na segunda quinzena de novembro. Um pot-pourri de diálogos antológicos e um best-off de sequências inesquecíveis, o espetáculo de Rodas passeia pela obra do anjo pornográfico com notável profissionalismo e generosidade.
Trinta e dois atores e atrizes cantam, dançam e se revezam em cenas incrivelmente dramáticas que cutucam as feridas da alma: paixão, ódio, morte, ciúme, rancor, violência, preconceito, sexo, tara. Nelson Rodrigues era um escritor de temas flamejantes e Hugo Rodas soube atiçar as chamas da rapaziada como (diz-se) nenhum outro diretor na cidade sabe. O resultado é um espetáculo incendiário que se mantém em alto nível durante cento e vinte minutos. As bandas O Tarot e Saci Were tocam a trilha sonora. Destaque pros atores que interpretam trechos de Anjo Negro e A Mulher sem Pecado.
O nome não poderia ser mais apropriado. É pelo olho da fechadura que vemos as coisas como de fato são entre quatro paredes e que descobrimos segredos guardados à sete chaves. Nesse lugar fantástico há mulheres seminuas, anjos de fio dental e elusivas figuras sacras; há um clima de cabaré, de vaudeville, inesperadas mudanças cenográficas, jogos de luz e sombra, momentos de euforia, outros em que tudo fica congelado, e quase cinquenta pessoas envolvidas na orquestração de um sonho coletivo. Muitas dessas pessoas são jovens recrutados na oficina-montagem que o diretor oferece no Espaço Cultural. Rodas já tinha montado uma versão dessa peça vinte e cinco anos atrás, no IdA (Instituto de Artes de UnB). Muitos profissionais das artes cênicas, hoje consagrados, surgiram ali. Ao final do espetáculo o octogenário diretor entra em cena pras ovações de praxe. Ele agradece o público, a equipe e diz que nada lhe dá mais prazer do que descobrir gente nova que tem talento para e interesse pelo teatro. Todos gritam em uníssono: “Huguito! Huguito!” Os artistas estão exaustos, suados, esgotados, mas parecem fracamente realizados. Descem as cortinas. Hora de acordar.
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