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02/10/2020, 10:08

Sobre mulheres trans nas modalidades femininas de competições esportivas

por Lucci Laporta

Para começar o debate, é preciso dizer que ele não se trata das diferenças entre “trans” e “mulheres”. Ninguém é “só” mulher e ninguém é “só” trans. Mulheres trans são tão mulheres quanto qualquer mulher que não seja trans (isto é, que seja cisgênera). O que nos difere não é a mulheridade, o “ser mulher”, mas a identidade de gênero, o ser trans ou o ser cis.

Já no que se refere às ciências biológicas, por sua vez, as teses com maior embasamento apontam que é justa a competição entre atletas trans e cis, baseando-se na gigantesca perda de massa muscular oriunda da diminuição de testosterona. As taxas deste hormônio diminuem devido ao uso de bloqueadores ingeridos por mulheres trans, quando fazem transição hormonal.

Joanna Harper, fisicista estadunidense que vem pesquisando a introdução de mulheres trans às modalidades femininas nos esportes, faz uma analogia interessante sobre a mudança hormonal em mulheres trans. É como se estas fossem carros grandes com motores pequenos. Imaginemos então um Opala com motor de Uno (uma atleta trans) disputando uma corrida contra um Uno com motor de Uno (uma atleta cis). É irreal dizermos que o Opala ganhará se a disputa se basear somente no motor.

Mas é preciso salientar ainda outro problema, além da Biologia, em todo este debate. No mundo inteiro, existem pouquíssimas atletas trans competindo contra atletas cis. Isso é reflexo da transfobia, que instaura uma espécie de apartheid contra a população trans. O reconhecimento dessa realidade sócio-histórica é fundamental se quisermos fazer essa comparação de performances esportivas entre pessoas trans e cis.

Até pouquíssimo tempo atrás, pessoas trans não eram vistas na rua de dia. A maioria de nós ainda é obrigada a se prostituir para adquirir renda, porque nos negam emprego. Não estamos, por exemplo, proporcionalmente representadas/os no seu trabalho, na sua escola, na sua faculdade, na sua igreja, no seu partido etc. Também não estamos incluídas/os, obviamente, nas modalidades esportivas. Se tal cisão social não existisse, teríamos diversos exemplos de atletas trans para compararmos suas performances às de atletas cis e, ao menos empiricamente, saber se todas as trans teriam performance superior. Mas, não, as poucas que conseguem competir são como tantas de nós que conseguimos adentrar nos espaços destinados somente a pessoas cis: tornam-se a única, a primeira de seu meio. Dessa forma, nem empiricamente podemos afirmar que a performance dessas atletas trans se deve unicamente à sua constituição física (à influência genética/hormonal que seus músculos tiveram até antes da transição hormonal) ou se ela simplesmente é muito boa. O grande problema de pessoas trans competindo não é a excepcionalidade de sua performance (nenhuma atleta trans é conhecida por ser superior a uma atleta cis), mas a excepcionalidade da própria presença de pessoas trans no esporte.

De todo modo, o que a ciência vem apontando, até aqui, é que o definidor da performance de qualquer atleta nunca é somente a genética, mas em especial a superação dos limites físicos em decorrência do próprio treinamento (influenciado pela injeção de subsídios pelo patrocínio, é claro). Atletas trans podem ou não superar os limites de seu próprio corpo, assim como qualquer cis. E o primeiro limite que se apresenta para uma atleta trans será superar a exclusão que a sociedade transfóbica nos impõe.

No entanto, os preconceituosos não estão verdadeiramente preocupados com a ciência. Vejam os ataques contra ao financiamento científico que Bolsonaro realiza, por exemplo. E sem qualquer respaldo científico, baseados em achismo, preconceito e fundamentalismo religioso, parlamentares fundamentalistas querem impedir que mulheres trans possam competir com as cis.

Devemos, portanto, confrontar com ciência os projetos de lei explicitamente transfóbicos, como o apresentado pelo distrital Delmasso na Câmara Legislativa do DF, que visam restringir o direito ao Esporte profissional para mulheres trans. Confrontemos com ciência e, claro, com a solidariedade de quem tem o mínimo de consciência social.

 

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